Reportagem do Jornal Nacional, veiculada nesta terça (29), estremeceu o governo Jair Bolsonaro e abriu guerra entre TV Globo e Planalto. Por trás da crise está a denúncia de um suposto envolvimento de Bolsonaro à execução da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL), em 2018. Segundo o JN, um porteiro do condomínio onde Bolsonaro mora, no Rio de Janeiro, informou à Justiça que um dos acusados pelo assassinato teria chegado ao local, horas antes do crime, e dito que iria à casa do então deputado.

 
Pela primeira vez, investigação aponta possível envolvimento, ainda que indireto, do presidente Jair Bolsonaro com o assassinato da vereadora Marielle Franco

Pela primeira vez, investigação aponta possível envolvimento, ainda que indireto, do presidente Jair Bolsonaro com o assassinato da vereadora Marielle Franco

O pivô do conflito é Élcio Queiroz, principal acusado pelo assassinato de Marielle e de seu motorista, Anderson Gomes. No depoimento, o porteiro afirmou que Élcio chegou ao condomínio Vivendas da Barra, na Barra da Tijuca, e disse, na portaria, que iria à residência de Bolsonaro, na casa nº 58. Ao interfonar para a casa do então deputado, a fim de confirmar se Élcio estava autorizado a entrar, o porteiro identificou a pessoa que atendeu como “seu Jair”, em referência ao presidente.

O porteiro também disse que acompanhou a movimentação nas câmeras de segurança. Segundo o depoimento, ao entrar no condomínio, o carro de Élcio se dirigiu à casa 66 – e não à 58. Quem morava na 66, porém, era ninguém menos que Ronnie Lessa, também acusado pela morte de Marielle. O porteiro então ligou novamente para a casa 58 e a mesma pessoa, que ele identificou como “seu Jair”, disse que sabia para onde Élcio se dirigia.

Os fatos teriam ocorrido no final da tarde de 14 de março de 2018, horas antes da execução de Marielle. Registros oficiais da Câmara dos Deputados apontam que Bolsonaro participou de votações na Casa às 14h e 20h30, em Brasília. Ele não podia, portanto, estar no Rio de Janeiro, conforme a própria Globo atestou na reportagem.

No livro de registro do condomínio estão anotados o nome de Élcio, a placa do seu carro, a casa a que ele disse que se dirigira (58, de Bolsonaro), a hora (17h10) e o dia em que ele entrou no condomínio. De acordo com o Jornal Nacional, a polícia tenta obter gravações das conversas trocadas via interfone para saber com quem o porteiro de fato conversou.

Curiosamente, Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), filho do presidente e também vereador no Rio – como era Marielle –, mora no mesmo condomínio. Segundo o Diário da Câmara do Rio, Carlos participou de sessão no plenário e votou em um projeto por volta das 16 horas. No mesmo dia, o parlamentar fez um post nas redes em que dava entrevista no seu gabinete para a Federação Israelita.

Reação destemperada

Embora o advogado da família Bolsonaro tenha sido ouvido na reportagem do Jornal Nacional e tenha negado qualquer envolvimento de seu cliente no crime hediondo contra Marielle, o próprio presidente foi às redes sociais para se manifestar. Em live na noite desta terça (29), Bolsonaro – que está na Arábia Saudita – disse que sequer conhecia a vereadora. Visivelmente transtornado, o presidente disse que também não conhecia Élcio nem Lessa e acusou a TV Globo de tentar atacar sua imagem e a de sua família com “patifarias” e “canalhices”.

Minutos depois, em entrevista à TV Record, Bolsonaro afirmou que o governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), atua em conluio com o delegado da Polícia Civil encarregado pelo caso Marielle para tentar incriminá-lo. O caso corre em segredo de Justiça. Foi Witzel, segundo o presidente, que vazou à Globo informações sobre o depoimento do porteiro. Para Bolsonaro, Witzel tenta destruir sua família porque quer se candidatar à Presidência em 2022.

Bolsonaro disse que acionará o ministro da Justiça, Sérgio Moro, para que o porteiro preste novo depoimento à Polícia Federal. “No meu entendimento, o senhor Witzel estava conduzindo o processo com o delegado da Polícia Civil para tentar me incriminar – ou pelo menos manchar o meu nome – com essa falsa acusação de que eu poderia estar envolvido na morte da Marielle”, declarou o presidente a jornalistas, na saída do hotel onde está hospedado, em Riad, na Arábia Saudita.

De acordo com Bolsonaro, fazia pelo menos 20 dias que Witzel sabia que ele foi citado no depoimento do porteiro do condomínio. “Não sei quem é o porteiro. Eu não tive acesso (ao processo) como a Globo teve, como o Witzel teve. O processo corre em segredo”, reclamou. “No meu entender, o porteiro está sendo usado pelo delegado da Polícia Civil, que segue ordem do senhor Witzel, governador.”

O presidente contou que Witzel o informou sobre a investigação durante o aniversário do ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Augusto Nardes, no Clube Naval do Rio de Janeiro, em 9 de outubro. “Ele (Witzel) chegou perto de mim e falou o seguinte: ‘O processo está no Supremo’. Eu falei: ‘Que processo?’. ‘O processo está no Supremo?’. ‘Que processo?’. ‘Ah, o processo da Marielle’. ‘O que eu tenho a ver com o caso da Marielle?’. ‘Não, o porteiro citou o teu nome’. Ou seja, Witzel sabia do processo que estava em segredo de Justiça”, declarou Bolsonaro.

Em nota divulgada em suas redes sociais, Witzel a manifestação presidente como “intempestiva” e disse que foi atacado injustamente. “Jamais houve qualquer tipo de interferência política nas investigações conduzidas pelo Ministério Público e a cargo da Polícia Civil”, disse o governador. “Não transitamos no terreno da ilegalidade, não compactuo com vazamentos à imprensa. Não farei como fizeram comigo, prejulgar e condenar sem provas”, escreveu.

A menção ao presidente, que tem foro privilegiado, pode levar a investigação ao Supremo Tribunal Federal (STF). Conforme o Jornal Nacional, membros do Ministério Público do Rio de Janeiro foram até a Corte, no último dia 17, para pedir orientações ao presidente Dias Toffoli, mas ainda não tiveram resposta.

O crime

Marielle Franco se denominava feminista e negra. Criada na comunidade da Maré, na zona norte do Rio, sua principal militância era em defesa dos moradores de favelas, principalmente os negros e mulheres. Também denunciou supostos abusos do 41º batalhão, de Acari, o que mais matou pessoas nos últimos cinco anos, segundo o ISP (Instituto de Segurança Pública).

A parlamentar e seu motorista foram atacados a tiros por volta das 21h30 de 14 de março de 2018, dentro do carro – um Chevrolet Agile branco –, na rua Joaquim Palhares, próximo à estação Estácio do metrô, no centro do Rio. Ela voltava de um encontro com mulheres negras na Lapa, também no centro, a cerca de 4 quilômetros dali.

Segundo o Ministério Público, um Cobalt prata emparelhou com o veículo em que Marielle estava. Élcio é suspeito de dirigir esse Cobalt na emboscada, enquanto Lessa seria o autor dos disparos. Marielle estava no banco de trás de um com sua assessora, que sofreu ferimentos leves. Na frente, estava seu motorista, Anderson Pedro Gomes, 39, que também morreu. Após atirarem, Élcio e Lessa fugiram em disparada sem roubar nada. Ligados à Polícia Militar, eles estão presos desde março passado.

Vermelho, 31 de outubro de 2019