Ministro da Economia anuncia aceleração das privatizações, um programa que segundo ele vai mudar o perfil da economia do país e “economizar” até R$ 450 bilhões. Na verdade, trata-se de garantir, à mão grande, a estabilidade do pagamento dos juros no mercado da dívida pública.  

Por Osvaldo Bertolino

 

 

No início de 1993, o ministro da Fazenda, Eliseu Rezende, apresentou ao então presidente da República, Itamar Franco, uma lista de empresas estatais que ele considerava passíveis de ser privatizadas para arrecadar US$ 30 bilhões e liquidar a parcela mais cara da dívida mobiliária, a chamada dívida pública, ou dívida interna. Formada por papéis do governo, ela correspondia, na época, a US$ 37 bilhões (em março deste ano, ela alcançou a astronômica cifra de R$ 5,4 trilhões).

Quando se falavam por telefone, Itamar Franco e Eliseu Resende usavam uma linguagem cifrada. Cada US$ 1 bilhão da dívida equivalia a um pé de café. ”Vamos arrecadar 6 pés de café com a privatização da Vale”, disse Rezende. O presidente respondeu: ”Cuidado que o espírito do Severo Gomes vai lhe puxar os pés esta noite”. Era uma referência ao então recém-falecido senador por São Paulo e um dos porta-vozes do nacionalismo brasileiro.

Contas públicas

Por expor opinião como essa, Itamar Franco foi tratado pelos donos do poder como um paspalhão. Na Presidência da República, ele sofreu um golpe branco — sob pressão, seu governo acabou assumindo o programa de governo do ex-presidente Fernando Collor de Mello, o que resultou na ”era neoliberal” do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). Desde então, essa dívida fabulosa assombra o país e tem favorecido somente os nichos historicamente privilegiados, sempre isentos do crivo da sociedade por se beneficiarem das políticas de privatização do Erário e do Estado. 

Surgiram como propaganda para ocultar as reais intenções dessas políticas mantras como “estabilidade monetária”, “ajuste fiscal” e “equilíbrio orçamentário”. Mas até o telespectador mais desinformado da TV Globo sabe por trás desse vocabulário estão os negócios dos poderosos do mundo financeiro, os operadores do mercado de títulos públicos. A “estabilidade” perseguida na verdade é a do ajuste das contas públicas com uma política fiscalista que equilibra as garantias de pagamento dos juros do mercado da dívida no orçamento federal. 

Trocando em miúdos: do total dos impostos que o povo paga, os ricos — que não pagam impostos — ficam com quase a metade. Entram nessa conta também a “economia”, conforme o vocabulário do ministro Paulo Guedes, de mais de R$ 1 trilhão que a “reforma” da Previdência Social pretende tirar das aposentadorias e da seguridade social, além da “economia” garantida pela Emenda Constitucional 95 que congela investimentos em áreas como Educação e Saúde, aprovada logo após o golpe do impeachment de 2016. 

Multidões nas ruas

Outra generosa fonte de recursos públicos para essa farra vem das privatizações. O Brasil traz em sua história recente a marca dessa amarga experiência que traumatizou o país por ser a entrega de um patrimônio acumulado a duras penas, o desmonte da garantia de uma economia soberana e de projetos de desenvolvimento. A história começou no governo Collor de Mello, com sua campanha midiática que mostrava o Estado como um paquiderme balofo e abobalhado, que precisava ser submetido a regime de emagrecimento e ginástica para voltar esbelto, faceiro, e cuidar das crianças e dos idosos.

Multidões nas ruas, palavras de ordem, faixas e cartazes combativos, bombas de gás lacrimogêneo e tumultos, eram recorrentes na década de 1990. A resistência dos setores democráticos e patrióticos fez os entreguistas apelarem para todo tipo de manobra, inclusive a corrupção desbragada. Ainda ressoa na memória nacional as acusações contra Ricardo Sérgio de Oliveira, diretor da área internacional do Banco do Brasil na “era neoliberal”, flagrado dizendo que atuava no ”limite da irresponsabilidade” no processo de privatização do sistema Telebrás. 

O episódio conhecido como “grampo do BNDES” trouxe ao nível da superfície o palavrório utilizado nos subterrâneos da privatização das telefônicas. Soube-se que ”o maior negócio da República” fora tramado numa atmosfera de alto risco (”no limite da irresponsabilidade”), em meio a um linguajar raso (”se der m…, estamos juntos”) e com pitadas de truculência (”temos de fazer os italianos na marra”). Soube-se ainda que FHC, quando consultado sobre as “vantagens” da negociata assentiu dizendo: ”Não tenha dúvida, não tenha dúvida.”

Eleição e prisão de Lula

Dizia-se, como faz agora Paulo Guedes, que seria necessário privatizar para “abater” a dívida pública e liberar “bilhões de dólares” das despesas com juros para financiar investimentos sociais. FHC afirmou que a taxa de retorno social seria substancialmente mais elevada do que a que o governo obteria em seus investimentos na mineração, na telefonia e na tecnologia industrial. “Cada um que prega contra as privatizações deveria ser obrigado a escrever mil vezes por dia, enquanto houver uma empresa estatal, um analfabeto ou uma criança mal nutrida no país: a democracia exige as privatizações para reduzir a dívida e liberar as despesas com os juros para gastos nas áreas sociais”, disse ele. 

Como se sabe, o dinheiro das privatizações desapareceu, a dívida pública explodiu e a taxa de juros continua estratosférica. As privatizações daquela época foram tão escandalosas que a sua denúncia foi uma das alavancas da eleição e reeleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não à toa os que se propuseram a restaurar a ordem neoliberal apelaram para um golpe, prenderam Lula e entregaram esse projeto à extrema direita, abrindo passagem para a condução do bolsonarismo ao governo, trazendo a tiracolo o truculento ministro Paulo Guedes e o não menos autoritário ex-juiz da Operação Lava Jato, Sérgio Moro. 

Imediatamente após o assalto ao poder, eles puseram em ação o seu programa de governo. Agora, mal terminou a primeira votação da “reforma” da Previdência Social na Câmara dos Deputados e o ministro da Economia anuncia que será a vez de acelerar as privatizações, um programa que segundo ele vai mudar o perfil da economia do país e “economizar” para a farra financeira até R$ 450 bilhões. O resultado virá da venda de 132 participações acionárias diretas ou indiretas da União, do pré-sal de licitações de petróleo e gás natural — além da privatização de empresas estratégicas que escaparam das primeiras investidas neoliberais, como a Eletrobras, os Correios e partes dos bancos públicos. 

Vermelho, 15 de julho de 2019