Presidente considera a dignidade da juventude brasileira uma batalha perdida. O caso é grave, mas a solução pode ser encontrada com outra perspectiva social.
Por Osvaldo Bertolino
O diagnóstico do presidente Jair Bolsonaro de que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) está errado ao apontar 13,4 milhões de trabalhadores desempregados, pode ser aproveitado para uma reflexão. Segundo ele, os dados da Pnad Contínua, do IBGE, mostrando que o desemprego cresceu em 13 estados brasileiros e no Distrito Federal no primeiro trimestre do ano, estão subestimados. Há mais brasileiros desempregados, afirmou em seu segundo e último dia da viagem a Dallas, nos Estados Unidos.
O que merece atenção mesmo é a sua afirmação de que muitas dessas pessoas nunca vão conseguir se recolocar por causa das falhas de qualificação no país. “Não estão habilitados a enfrentar um novo mercado de trabalho, a indústria 4G. Como é que você vai empregar esse pessoal?”, indagou. “Tenho pena, tenho. Faço o que for possível, mas não posso fazer milagre, não posso obrigar ninguém a empregar ninguém”, disse ele. “A garotada está aí se formando, bota um papel na parede, em parte, digo, em parte, que não serve para nada”, complementou.
Certezas estabelecidas
Há de fato um drama para a juventude brasileira entrar no mercado de trabalho. Segundo o IBGE, os jovens compõem uma turma de 55 milhões de brasileiros com potencial para influenciar decisivamente a economia do país. Pode-se dizer que são a primeira geração digital da história. Ela emerge no Brasil e em vários outros países com uma força avassaladora. Trata-se de uma moçada que nasceu a partir do finzinho dos anos 1990 e início dos anos 2000. É uma geração rica em demandas e hábitos específicos, com jeitos e objetivos muito próprios, e que vai, em breve, tomar as rédeas do país e imprimir a ele suas ideias e seus estilos.
Essa geração vai, muito provavelmente, chacoalhar regras e certezas estabelecidas. O desafio está na aprendizagem da linguagem e dos anseios que são efetivos junto a esses novos trabalhadores. E está também na desaprendizagem das práticas que caducaram ou estão caducando — uma tarefa igualmente difícil. Ao que tudo indica, nada será como antes. As gerações mais antigas terão de compreender tanto quanto possível quem são, como pensam e como se comportam os integrantes dessa nova geração.
Vida sem internet
Infelizmente, há ainda poucos estudos e dados sobre essa juventude. (Especialmente no Brasil, onde a demografia é ainda uma ferramenta subutilizada.) A característica mais marcante dessa geração é precisamente ser digital. Ela rompe com a tradição de sua espécie, que é analógica desde seus primórdios. Eles raciocinam e se movimentam a partir de novas e inéditas coordenadas. Essa turma já nasceu sendo filmada, virando registro eletrônico, e cresce na frente de um aparelho digital. Falar com a geração digital exige mudanças não apenas nas mídias escolhidas, mas também na linguagem utilizada.
Por tudo, a interatividade e o virtualismo — conceitos complexos para as gerações anteriores — são lugares-comuns no universo dessa geração. Eles não imaginam a vida sem internet e sem realidade virtual. Tampouco concebem um dia-a-dia desplugados. Mas, quando falam de seus problemas, o fazem de modo a deixar evidente a questão principal: o desemprego. Ouça-se Jota Quest, que foi um porta-voz da primeira leva dessa geração no Brasil: “Macacada reunida/Galera pelejando e dançando/Procurando uma saída (…) Que tá faltando emprego no planeta dos macacos.”
Ciclos educacionais
Essa realidade se alterou significativamente nos governos Lula e Dilma, com o fim do desemprego em massa, mas voltou com tudo desde que os golpistas entraram em cena para desestabilizar o ciclo progressista iniciado em 2003. E voltamos àquela realidade de quando o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-econômicos (Dieese) estimou em 1 milhão e 600 mil jovens brasileiros entre 16 e 24 anos procurando e não encontrando colocação no mercado de trabalho nas principais regiões metropolitanas do país.
Segundo dados divulgados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) — referentes à Pnad/IBGE 2005 — no Brasil o desemprego dos jovens entre 15 a 24 anos era de 19,1%, com expressão mais perversa no caso de mulheres e negros, cujos índices eram de 24,7% e de 20,4% respectivamente. Mais: 57,4% dos jovens empregados não tinham carteira assinada. À essa expressão cruel somavam-se os altos índices de trabalho infantil. Estimava-se que 4 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 16 anos estavam trabalhando no Brasil.
Atualmente, com a volta do desemprego em massa, as taxas entre os jovens de 16 a 24 anos representam o dobro em comparação ao total da população. Mesmo quando ocupados, pode-se verificar que são destinados aos jovens as posições de baixa qualificação e remuneração. Uma parcela significativa que aceita trabalhar sob essas condições compromete sua escolarização sem completar sequer os ciclos educacionais compatíveis com a sua idade.
Os dados têm um efeito devastador sobre os jovens quando saem da frieza do papel. Uma pesquisa do Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE) mostrou que o maior temor dos estudantes de São Paulo é terminar seus cursos e não conseguir emprego. A pesquisa entrevistou 500 jovens de 16 a 25 anos. Desse total, 42% disseram temer não conseguir uma colocação no mercado de trabalho. Um índice bem mais alto do que o de outras preocupações, como obter independência financeira (15%) ou melhorar a qualidade de vida (14%). Segundo as estimativas mais otimistas, para melhorar essa situação o Brasil precisaria retomar um crescimento econômico de 6% ao ano.
Literatura de autoajuda
Um dos efeitos mais nocivos do desemprego é a combinação de desânimo com violência. Muitas vezes, os jovens fazem a sua parte ao estudar, mas a falta de perspectiva os leva à depressão, à inatividade e ao desespero da droga e do crime. O governo Lula começou a amenizar o drama. Em 2006, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) assinou 13 convênios com entidades do movimento social para a execução em 2007 dos Consórcios Sociais da Juventude. Naquele ano, 18.520 jovens de baixa renda foram atendidos nas cidades e no campo. O governo Dilma ampliou os convênios.
Os Consórcios Sociais da Juventude integraram as ações do Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego (PNEPE), do MTE, para capacitar jovens em situação de vulnerabilidade pessoal e risco social, e oferecer a eles a primeira oportunidade de emprego. O programa era realizado sempre em parceria com entidades não-governamentais, inserindo pelo menos 30% no mercado de trabalho. Eles tinham como objetivo qualificar jovens com idade entre 16 e 24 anos, de baixa renda, com ganho per capita familiar de até meio salário mínimo.
Chegou-se até a cogitar experiências de outros governos, como a França, que instituiu o programa “Primeiro Emprego”, desenvolvido pelo governo socialista de Leonel Jospin, que exigia dos órgãos públicos um percentual de vagas para jovens na faixa de 18 a 24 anos. O programa não ficava apenas na contratação — o vínculo empregatício deveria durar, no mínimo, cinco anos.
Na opinião de Marcio Pochmann, economista da Unicamp especializado no problema do emprego, o jovem não deve pensar que é culpado por não conseguir trabalhar. “O jovem tem de saber que a situação que ele vive não é originária de um problema de ordem individual. No Brasil, tem crescido uma espécie de literatura de autoajuda, que indica que roupa ele deve vestir em entrevistas, o que deve dizer etc. Mas não existe uma saída individual porque não há empregos para todos. Precisamos de políticas públicas, que não temos hoje”, diz ele.
Homicídios no Brasil
Não é somente a falta de crescimento econômico que mingua os empregos. A tendência de enxugamento de postos de trabalho e a redução da oferta de cargos públicos — tanto pelos conservadores ajustes orçamentários quanto pelas privatizações, a base dos programas de governo do ex-presidente golpista Michel Temer e de Jair Bolsonaro — têm impacto direto sobre o emprego. Além do caos social.
Quase 50% dos homicídios no Brasil, hoje, são de pessoas com menos de 25 anos de idade. A quantidade de homicídios é superior a 40 mil pessoas por ano, o que é um fato extremamente lamentável e termina afetando, sobretudo, o jovem de menor renda. Há ainda o fato de que em torno de 160 mil jovens por ano estão saindo do Brasil porque não estão vendo possibilidade de uma vida decente no país.
Outro ponto importante para se entender esse cenário é o que Bolsonaro chamou de “novo mercado de trabalho, a indústria 4G”. Esse conceito traz consigo a questão do aumento de produtividade, que significa intensificação da exploração assalariada. Crescimento de produtividade é aquilo que cada trabalhador adiciona de valor por cada hora trabalhada. As máquinas modernas por si só não são capazes de aumentar a produtividade. Elas obrigam os trabalhadores a acelerar a velocidade das operações. A resultante é o que se convencionou chamar de “desemprego tecnológico”.
Anarquia social
O guru da administração Peter Drucker, um norte-americano cujos livros são festejados por ajudar a simplificar a nova realidade econômica, afirma que “o desaparecimento da mão-de-obra como fator chave da produção emergirá como o crítico assunto pendente da sociedade capitalista”. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) também comentou o tema nesse tom, ao criar o neologismo “inempregáveis”. “O processo global de desenvolvimento econômico cria pessoas dispensáveis no processo produtivo, que são crescentemente ‘inempregáveis’, por falta de qualificação e pelo desinteresse em empregá-las”, disse ele em 1997.
Esse tema esteve presente nas análises econômicas de Karl Marx e Friedrich Engels. “Sob sua forma máquina (…), o meio de trabalho se torna imediatamente o concorrente do trabalhador. A máquina cria uma população supérflua, isto é, inútil para as necessidades momentâneas da exploração capitalista. (…) Em determinado grau de desenvolvimento, um progresso extraordinário na produção pode ser acompanhado de uma diminuição não só relativa como absoluta do número de operários empregados”, escreveu Marx em O Capital.
No artigo Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, Engels diz: “É a força propulsora da anarquia social da produção que converte a capacidade infinita de aperfeiçoamento das máquinas num preceito imperativo, que obriga todo capitalista industrial a melhorar continuamente a sua maquinaria, sob a pena de perecer. Mas melhorar a maquinaria equivale a tornar supérflua uma massa de trabalho humano (…). A expansão dos mercados não pode desenvolver-se ao mesmo ritmo que a produção. A colisão torna-se inevitável.”
O grande dilema
No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels escreveram: “A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção.” A tendência não é a de uma nova era de prosperidade para todos. Não se pode ignorar a tendência de trabalho com alta tecnologia. Milhões de trabalhadores, em todo o mundo, já foram definitivamente excluídos do mercado formal de trabalho. Previsões sombrias quanto ao futuro surgem quase todos os dias de estudiosos dos temas sociais.
Mas é possível afirmar com segurança que o aumento da produtividade implica aumento de renda. O problema está na forma como essa renda é apropriada. Essa contradição elementar remete à reflexão sobre o atual estágio da evolução da sociedade. Não é possível imaginar o capitalismo sem classes e luta entre elas. Apesar do discurso estar sempre na agenda da Organização Mundial do Comércio (OMC) — com ameaça de punição —, baixos salários, regimes de superexploração, trabalho escravo de presos e infantil, além de restrições à liberdade sindical, são cada vez mais frequentes.
O aumento da produtividade do trabalho deveria criar condições para a elevação do bem-estar e da cultura da humanidade. A distribuição desses ganhos poderia abrir novas perspectivas de progresso social. Mas o capitalismo impede a utilização dessas possibilidades. Até uma simples redução da jornada de trabalho enfrenta duras resistências. O grande dilema da atualidade é que para os detentores do grande capital só lhes convêm a apropriação dos ganhos de produtividade, e não a sua distribuição.