Geógrafo britânico diz que, em algum momento, Brasil vai precisar voltar ao FMI. Para Harvey, classe trabalhadora ainda pode ser vanguarda da mudança.
O geógrafo britânico David Harvey afirma que um dos mais graves problemas da atualidade, e que não tem sido devidamente debatido, é o endividamento no mundo. “Se pegarmos o total da dívida e dividir pela população total, cada pessoa deve US$ 80 mil. A lógica irônica do sistema financeiro, que controla as políticas governamentais dos países, é que os ganhos são ‘socializados’ pelos mais ricos, enquanto a sociedade como um todo paga a conta”, apontou Harvey, em palestra promovida nesta segunda-feira (26) em São Paulo pelas editora Expressão Popular, ligada ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e pela editora Boitempo.
“Austeridade fica para nós e o socialismo para o 1% das pessoas mais ricas, que controlam a maioria das dívidas e lucram com ela”, criticou. “É preciso prestar atenção à massa incontrolável da dívida. Eles usam isso para comprar terra e propriedades. A terra custa caro porque o 1% mais rico tem muito dinheiro e eles não sabem o que fazer com isso. A terra não é usada como deveria para cuidar da nutrição e do meio ambiente.”
O pensador afirmou que todos os secretários do Tesouro dos Estados Unidos, desde o presidente Bill Clinton, são oriundos do Goldman Sachs, grupo financeiro multinacional, sediado em Nova York. “Quem domina e governa o Estado? A gente brinca que o Goldman Sachs é quem controla os Estados Unidos.” Embora Clinton tenha tentado implementar políticas mais independentes, o mercado financeiro não permitiu. “Tudo o que Clinton fez, foi o que eles queriam.”
Harvey afirmou que o único país do mundo em que o governo controla o sistema financeiro é a China. “Lá, os bancos fazem o que o Estado quer que façam. Precisamos de uma política para ‘desempoderar’ o sistema financeiro, que é a única coisa que ele não quer.”
Para Harvey, a Grécia, nos últimos dez anos, é um exemplo emblemático do que acontece com os países obrigados a adotar políticas de austeridade. “Naquele país as pessoas perdem os bens e tudo que têm.”
Ele avalia que, em algum momento, o Brasil vai precisar voltar a emprestar recursos do Fundo Monetário Internacional (FMI), entidade à qual o presidente da Argentina, Mauricio Macri, recorreu recentemente. O país vizinho passa por um período de grave crise, com recessão, inflação muito elevada e o maior desemprego desde 2006. O Produto Interno Bruto argentino recuou 2,5% em 2018 e 5,8% no primeiro trimestre de 2019.
A política do campo progressista deveria privilegiar a luta para evitar que o capital controle a terra, “que tem de ser controlada pelo povo”. “É um longo caminho, mas tirar a terra do mercado de commodities é vital.”
O geógrafo acredita que a classe trabalhadora ainda pode ser “a vanguarda da mudança”, considerando que hoje ela é maior do que em qualquer outro momento da história. De acordo com ele, nos anos 1980 eram 2 trilhões, e hoje os proletários chegam a 3 trilhões de pessoas.
E afirmou que, nos Estados Unidos, os sindicatos não compreendem o “poder imenso” da nova classe trabalhadora. “A esquerda precisa começar a falar com essa nova classe, que não está nas fábricas, mas na área de logística e outras semelhantes.”
Harvey considera a educação uma área estratégica das sociedades hoje, e os detentores do poder sabem disso. Nos Estados Unidos, lembrou, a educação “foi tomada pelos interesses das corporações e dos liberais”. O motivo é que ela é usada para promover a segregação entre pessoas “educadas” e “não educadas”.
“A distinção entre trabalho intelectual e o trabalho manual é uma das maiores distinções de classe que há. As universidades dos Estados Unidos não são mais financiadas pelos estados, mas por corporações e grandes financiadores, como Bill Gates. O interesse deles não é a sociedade, mas financiar pesquisa e produtos que gerem lucro”, explicou. “Mas, afortunadamente, as universidades não são totalmente controladas, e pessoas como eu podem florescer em alguns cantinhos.”