O acesso à Justiça constitui, entre outros aspectos, em garantia fundamental de direitos[1], remetendo à ideia de que a efetivação de um direito somente se concretiza se garantido o pleno e amplo acesso ao Poder Judiciário. O benefício da Justiça gratuita aos economicamente frágeis apresenta-se como mecanismo essencial à garantia de acesso à Justiça, notadamente em um país que convive com congênita e estrutural desigualdade social, recrudescida pelos marcos desregulamentadores, incluindo, neste rol, o acirrado debate quanto à cobrança do beneficiário condenado em honorários sucumbenciais (artigo 791-A, parágrafo 4º, da CLT, com redação pela Lei 13.467/2017).
A prolação de alguns primeiros acórdãos turmários pelo Tribunal Superior do Trabalho sobre a matéria tem incrementado o debate sobre a sua constitucionalidade[2], bem como sobre qual a melhor interpretação de sua dinâmica e aplicabilidade.
No primeiro e segundo graus não há consenso. Por exemplo, os tribunais regionais do trabalho da 4ª, 14ª e 19ª regiões, em decisões plenárias proferidas em incidentes de arguição de inconstitucionalidade, declararam a inconstitucionalidade da referida disposição legal, ao passo que o TRT da 18ª Região declarou a inconstitucionalidade parcial, restrita ao trecho “desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa”.
Já na corte suprema pende de julgamento ação declaratória de inconstitucionalidade (ADI 5.766). O trâmite processual foi suspenso em 10/5/2018, com pedido de vista do ministro Fux, após os votos do ministro Fachin, entendendo pela inconstitucionalidade, e do relator, ministro Barroso, para dar interpretação conforme a Constituição, mantendo a possibilidade de condenação da parte autora beneficiária de gratuidade, mas restringindo a dedutibilidade ao proveito econômico obtido em ação judicial[3].
Apenas recentemente foi a matéria enfrentada pelo TST. Esses primeiros julgados, ainda que sem força obrigatória (artigo 927 do CPC), gozam de elevada eficácia persuasiva, seja em razão da autoridade prolatora (órgãos fracionários da mais alta corte trabalhista, de função uniformizadora), seja em razão da novidade do tema (case of first impression). Ademais, a jurisprudência, quando invocada pela parte, enseja ônus argumentativo para o julgador, o qual, sob pena de nulidade por ausência de motivação, deve “demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento” (artigo 489, parágrafo 1º,VI, do CPC), ou, ao menos, explicitar as razões de sua discordância[4]. Em se tratando de órgãos fracionários do TST, a existência de precedente persuasivo ainda os confronta com o dever de evitar a criação de dissenso. Assim, caso não concordem com o precedente firmado, em vez de proclamarem um julgamento conflitante, deveriam suspendê-lo, para provocar a uniformização através do incidente apropriado (IRR ou IAC, conforme o tema seja repetitivo ou não), dada a obrigação de manter a jurisprudência “estável, íntegra e coerente” (artigo 926 do CPC)[5].
Nos processos AIRR-10184-51.2018.5.03.0074 e AIRR-11689-84.2017.5.03.0180 (respectivamente da 8ª Turma, rel. min. Dora Maria da Costa, e da 3ª Turma, rel. min. Alberto Bresciani), a fundamentação apresentada foi deveras sucinta. No primeiro, foi arguida a “violação direta à Constituição Federal” (artigo 896, parágrafo 9º, da CLT) no acórdão do TRT da 3ª Região que reformou a sentença para condenar o autor a pagar honorários advocatícios de “5%, sobre o valor dos pedidos julgados improcedentes”. A 3ª Turma do TST confirmou a inadmissibilidade do recurso de revista, entendendo não demonstrada a violação ao artigo 5º, XXXV (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”) e LXXIV (“o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”).
Aduziu que o Pleno do TST, através do artigo 6º da IN 41/2018, entendeu pela aplicabilidade da referida norma, a qual, “por óbvio”, não violaria o artigo 5º, XXXV e LXXIV da Constituição. Já no AIRR-11689-84.2017.5.03.0180, a 3ª Turma do TST concordou com a corte regional no sentido de que a regra promove a atuação responsável e leal das partes no processo, impactando em sua qualidade e celeridade, e destacou a posição do Pleno na IN 41/2018, também concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade.
Finalmente, no AIRR-2054-06.2017.5.11.0003, a mesma 3ª Turma do TST (rel. min. Alberto Bresciani, 28/5/2019), mais uma vez confirmou a constitucionalidade do artigo 791-A, parágrafo 4º, da CLT, mas lhe acresceu um condicionamento hermenêutico bastante importante. Asseverou que a imposição de cobrança “a beneficiários da Justiça gratuita requer ponderação quanto à possibilidade de ser ou não tendente a suprimir o direito fundamental de acesso ao Judiciário daquele que demonstrou ser pobre na forma da Lei”, em alusão à proibição de esvaziar “direitos e garantias individuais” (cláusulas pétreas, artigo 60, parágrafo 4º, IV, da Constituição), como o acesso à Justiça gratuita (artigo 5º, LXXIV, da Constituição). Nesse encalço, firmou que somente se deverá exigir “do beneficiário da Justiça gratuita o pagamento de honorários advocatícios se ele obtiver créditos suficientes, neste ou em outro processo, para retirá-lo da condição de miserabilidade”, caso contrário, penderá, “por dois anos, condição suspensiva de exigibilidade”.
Deveras, da literalidade do parágrafo 4º poder-se-iam extrair duas interpretações. A primeira, levando à conclusão de que o autor poderia ter os honorários descontados do proveito econômico obtido da ação, ainda que de valor baixo e insuficiente para lhe retirar da condição de miserabilidade. Esse raciocínio o discriminaria em relação aos autores cíveis, além de afrontar as garantias constitucionais mencionadas.
Entretanto, à vista da presunção de constitucionalidade da lei, deve o intérprete buscar “salvar a norma de leituras constitucionalmente desastrosas”[6]. Nesta perspectiva, optou-se pela leitura do parágrafo 4º em sua inteireza, confrontando-o com a sistemática constitucional e harmonizando-o com a análoga regra do CPC. Assim, “créditos capazes de suportar a despesa” são aqueles que, por seu vulto, transformariam a condição socioeconômica do beneficiário da justiça gratuita[7], semelhante ao que sempre ocorreu no âmbito do processo civil, seguindo opção jurídico-política fundante de nossa República, no sentido de que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (artigo 5º, LXXIV). Aliás — e não poderia ser diferente —, no mesmo sentido é a tradicional jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
3. Sendo assim, na liquidação se verificará o “quantum” da sucumbência de cada uma das partes e, nessa proporção, se repartirá a responsabilidade por custas e honorários, ficando, é claro, sempre ressalvada, quando for o caso, a situação dos beneficiários da assistência judiciária gratuita, que só responderão por tais verbas, quando tiverem condições para isso, nos termos do art. 12 da Lei n 1.060, de 05.02.1950. 4. Agravo improvido (STF, 1ª Turma, AgRg-AgIn nº 304693, Rel. Min. Sidney Sanches, julgamento em 9-10-2001, DJU 1º-2-2002).
Ou seja, o próprio STF já decidiu que a simples obtenção de verbas numa ação judicial não autoriza automaticamente o desconto dos honorários de sucumbência recíproca impostos ao beneficiário da Justiça gratuita. Reitere-se: mesma diretriz prestigiada no recente CPC (artigo 98, parágrafo 3º), produzido em cenário pós-88.
Nessa senda, digna de nota é a referida decisão do TST, porque reconhece que tais limitações hermenêuticas “restauram a situação de isonomia do atual beneficiário da Justiça gratuita” e estabelecem que “a constatação da superação do estado de miserabilidade, por óbvio, é casuística e individualizada”.
Ainda que o julgado não ostente eficácia vinculante ou obrigatória, não há dúvidas de que carrega elevada eficácia persuasiva em razão da autoridade prolatora e de sua novidade, tendo potencial para influenciar futuras decisões. Qualquer órgão fracionário do TST que julgar em sentido contrário gerará incoerência jurisprudencial (artigo 926 do CPC), a desafiar o recurso de embargos para a SDI (artigo 894 da CLT, cujo acórdão será obrigatório (artigo 927, V, do CPC), ou a instauração de incidente de recursos repetitivos (IRR) ou de assunção de competência (IAC), vinculantes em sentido estrito, sujeitos a reclamação (artigo 988 do CPC).
O prognóstico é que tal decisão, embora ainda não seja vinculante, servirá de baliza para a produção de precedente qualificado na forma do CPC (artigo 927), com o potencial de pacificar a jurisprudência trabalhista em tal sentido, salvo se overruled pela decisão final do STF na ADI 5.766.
[1] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1988.
[2] TST-AIRR-10184-51.2018.5.03.0074, 8ª Turma, Rel. Min. Dora Maria da Costa, 19/03/2019; TST-AIRR-11689-84.2017.5.03.0180, 3ª Turma, Rel. Min. Alberto Bresciani, 08/05/2019; TST-AIRR-2054-06.2017.5.11.0003, 3ª Turma, Rel. Min. Alberto Bresciani, 28/05/2019.
[3] ADI/5766, 10/05/2018, ver <http://stf.jus.br/portal/diarioJustica/listarDiarioJustica.asp?tipoPesquisaDJ=AP&classe=ADI&numero=5766>.
[4] PRITSCH, Cesar Zucatti. Manual de prática dos precedentes no processo civil e do trabalho. São Paulo: LTr, 2018, p. 85.
[5] PRITSCH, Cesar Zucatti. O Art. 926 do novo CPC e a vedação à criação de jurisprudência conflitante. Revista Consultor Jurídico/CONJUR, 3/7/2018, <https://www.conjur.com.br/2018-jul-03/cesar-pritsch-cpc-vedacao-criacao-jurisprudencia-conflitante>.
[6] SOUZA JÚNIOR, Antonio Umberto de; SOUZA, Fabiano Coelho de; MARANHÃO, Ney; AZEVEDO NETO, Platon Teixeira de. Reforma trabalhista: análise comparativa e crítica da Lei n. 13.467/2017, Ed. Rideel, São Paulo, 2017, p. 386.
[7] Ibidem.
Cesar Zucatti Pritsch é juiz do Trabalho do TRT-4, ex-procurador federal e juris doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA).
Fernanda Antunes Marques Junqueira é juíza do Trabalho do TRT-14, doutoranda em Direito e Processo do Trabalho Contemporâneo pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Ney Maranhão é juiz do Trabalho do TRT-8, professor adjunto da Universidade Federal do Pará (UFPA) e doutor em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP), com estágio na Universidade de Massachusetts (EUA).