1. A noção universal da liberdade sindical
Começar pela noção universal da liberdade sindical significa, a um só tempo, contextualizar o objeto de nossa exposição e fixar as premissas sobre as quais se assentam o instituto da contribuição negocial. A liberdade sindical, tal como concebida e preconizada nos convênios internacionais, é pluridimensional, compreende tanto o plano individual como coletivo e difuso. No plano individual, abrange a tão brandida liberdade da pessoa física de se filiar e manter filiado a sindicato (por exemplo, na ADI 5.794, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da extinção da obrigatoriedade da contribuição sindical sob o entendimento de que não se pode admitir que tal contribuição seja legalmente imposta a trabalhadores e empregadores quando a Constituição determina que ninguém é obrigado a se filiar ou a se manter filiado a uma entidade sindical).
Mas a liberdade sindical é muito mais do que isso. Como expressão da cidadania, envolve o direito de participação e atuação sindical, sem sofrer qualquer discriminação, o direito de voz e voto nas assembleias, nos movimentos e ações desenvolvidas pelo sindicato de classe, de eleitor e elegibilidade para os cargos de administração e representação. Como também o direito coletivo de entabular negociação coletiva e o direito de greve.
No plano coletivo, o conceito de liberdade sindical estimula o livre e efetivo exercício da atividade sindical, sem quaisquer restrições, assim como — e fundamentalmente — o direito de negociação coletiva e o direito de greve. O direito ao “reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho”, previsto no artigo 7º, inciso XXVI, da Constituição Federal, é inerente à liberdade sindical.
A negociação coletiva é um direito humano fundamental exatamente por consistir num instrumento de democratização do poder e riqueza no seio da sociedade civil, num importante veículo institucionalizado para o progresso dos direitos sociais por meio da mobilização dos trabalhadores, numa constante luta pela liberdade e igualdade. O que evoca a Carta de Filadélfia, publicada na 26ª Conferência Internacional da OIT, ocorrida na Filadélfia, em 1944, a que expôs pela primeira vez de forma clara os princípios que guiariam a OIT, sinalizando os patamares éticos mínimos internacionais do mundo do trabalho, cujo item 2 da referida Carta dispõe: “A liberdade de expressão e de associação constitui condição indispensável para o progresso”[1].
Ao longo dos tempos, as entidades sindicais alçaram grande importância na sociedade global, pelo desempenho de papel protagonista para a obtenção de condições dignas de trabalho, inclusive adquiriram a legitimidade jurídica para negociar com o empregador a priorização do trabalho decente. Nos dizeres de José Carlos Arouca: “a organização dos trabalhadores em sindicato mostrou-se indispensável para aqueles que isoladamente eram pobres e fracos, tornando-se fortes quando constituíssem uma coletividade”. Esse papel constitucional e internacional da ação sindical (além de histórico, lógico e teleológico) não pode ser rasgado por uma norma infraconstitucional, com a transmutação da natureza da negociação coletiva, de instrumento de inclusão socioeconômica para mecanismo de rebaixamento das condições de vida e de trabalho.
Vale dizer, o artigo 611-A, parágrafo 2º, da CLT, o qual dispõe que “a inexistência de expressa indicação de contrapartidas recíprocas em convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho não ensejará sua nulidade por não caracterizar um vício do negócio jurídico”, padece do vício da inconstitucionalidade. Tal dispositivo atenta ainda contra a própria natureza de “negócio jurídico” da convenção e do acordo coletivo, o que pressupõe uma transação, ou seja, o despojamento bilateral ou multilateral, com reciprocidade entre os agentes envolvidos, condição de produção de normas jurídicas autônomas. Daí porque o instrumento normativo não poderá prevalecer caso consubstancie em ato explícito de renúncia (sem qualquer contrapartida recíproca).
Como é sabido, o artigo 611-A, parágrafo 2º da CLT constitui-se em uma das causas da inclusão do Brasil, em 2018, pela Comissão de Peritos da OIT, na lista dos 24 países acusados de descumprir normas internacionais de proteção aos trabalhadores, por violação a Convenção 98 da OIT, sobre direito de sindicalização e de negociação coletiva, ratificada pelo Brasil.
Claramente, o objetivo perseguido pela malsinada Lei 13.467/2017 foi o de converter os sindicatos em agentes da redução ou da supressão de direitos sociais fundamentais. O ataque foi certeiro: comprometeu a fonte de custeio das entidades sindicais, terminando, abruptamente, com a contribuição sindical compulsória que vigorava há décadas. Ao mesmo tempo em que enfraqueceu os sindicatos, ampliou os poderes da negociação coletiva, possibilitando-se a sobreposição do acordo ou convenção coletiva sobre a norma legal, a famigerada “prevalência do negociado sobre o legislado”, com vistas ao rebaixamento das condições de trabalho (isso sem mencionar outras alterações prejudiciais à organização sindical encetadas pela Lei 13.467/17, tais como a equiparação da dispensa coletiva à dispensa individual, vedação da ultratividade, terceirização ilimitada e dispensa da homologação das rescisões contratuais).
A fórmula “do negociado sobre o legislado” é uma falácia. O negociado sempre prevaleceu sobre o legislado, vez que a legislação heterônoma estabelece apenas e tão somente um patamar mínimo civilizatório, o chamado “mínimo existencial”, abaixo do qual não há que se falar em dignidade da pessoa humana, enquanto os trabalhadores, empresas e entidades patronais sempre puderam negociar condições de trabalho melhores que as legalmente previstas, no regular exercício da autonomia privada coletiva.
2. Da contribuição negocial após o fim do imposto sindicalContraditoriamente, o artigo 611-B, XXVI da CLT reduz os poderes negociais dos sindicatos, ao proibir que a negociação coletiva trabalhista insira cláusula normativa estabelecendo “qualquer cobrança ou desconto salarial”, “sem expressa e prévia anuência do trabalhador”. No momento, a questão que se coloca não é o fim do imposto sindical, dirimida pelo Supremo Tribunal Federal, mas a da juridicidade da substituição do imposto sindical por outra fonte de custeio mais democrática, equânime e justa: a contribuição negocial, também chamada de assistencial ou cota de solidariedade, que resulta da negociação coletiva trabalhista e a estimula.
O artigo 611-B, XXVI, da CLT desestimula a sindicalização, em contraposição à essência do Estado Democrático de Direito, que valoriza e incentiva os chamados corpos intermediários da sociedade civil organizada, dentre os quais os sindicatos. A imposição somente ao sindicalizado do pagamento da contribuição negocial, do ônus da manutenção da entidade sindical, enquanto o bônus obtido pelas negociações coletivas é repartido com todos, indistintamente, representa um baita desestímulo à sindicalização, uma injustiça manifesta, juridicamente inaceitável, por violar o cerne, o âmago principiológico do sistema democrático pluralista. Como adverte Celso Antonio Bandeira de Melo, “violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma qualquer, é a mais grave forma de inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido”. No caso, viola-se o princípio que se situa no mais alto escalão: o da liberdade sindical no plano coletivo, que transcende ao direito individual de se filiar ou manter filiado, abrangendo o interesse coletivo da liberdade de associação, que “constitui condição indispensável para o progresso” (Carta de Filadélfia).
À luz da normatividade internacional e constitucional é permitido o desconto, não individualmente, mas coletivamente da contribuição negocial fixada pela Assembleia Geral do sindicato como contrapartida dos benefícios previstos na norma coletiva (Convenção 95 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil, precedentes do Comitê de Liberdade Sindical da OIT).
No magistério do José Carlos Arouca: “A assembleia geral é a instância superior e soberana do sindicato e suas decisões obrigam todos os filiados que se submetem à disciplinação estatutária. Tratando-se, porém, de interesses coletivos, no sistema de unicidade e segundo o sistema sindical brasileiro, as deliberações obrigam todos os representados independentemente de filiação sindical. E aí a liberdade sindical individual, mas negativa, como direito de não se filiar nem se manter filiado a sindicato não faz diferença”[2].
O sistema de unicidade sindical e a representação por categoria permanecem vigentes. Como destacado pelo relator ministro Luiz Edson Fachin em seu voto vencido no julgamento da ADI 5.794, o modelo de sindicalismo criado pela Constituição sustenta-se em um tripé formado por unicidade sindical (artigo 8º, II), representação estruturada por categoria (artigo 8º, III) e a contribuição sindical compulsória (artigo 8º, IV): “Assim sendo, na exata dicção do texto constitucional, é preciso reconhecer que a mudança de um desses pilares pode ser desestabilizadora de todo o regime sindical”.
A desestabilização provocada pela retirada de um dos três pilares fundamentais do sistema sindical brasileiro constitui uma espécie de distinguishing, que exige um novo olhar sobre a questão do custeio sindical, uma profunda mudança da postura hermenêutica na concretização do princípio da liberdade sindical, em prestígio ao plano coletivo em detrimento do individual negativo (filiar ou manter-se filiado), à luz da principiologia internacional. Impõe-se a revisão dos entendimentos prevalecentes anteriormente à entrada em vigência da Lei 13.467/17, que terminou com o imposto sindical, consubstanciados na Súmula Vinculante 40 do STF e no Precedente 119 do TST. Em 3/3/2017 (antes da entrada em vigência da Lei 13.467/17), o Supremo Tribunal Federal reafirmou, no ARE 1.018.459, com repercussão geral reconhecida, o entendimento no sentido da inconstitucionalidade da contribuição assistencial imposta por acordo, convenção coletiva de trabalho ou sentença normativa a empregados não sindicalizados.
A nova realidade posta com o fim do imposto sindical reforça a legitimidade e a juridicidade da extensão da contribuição negocial aos trabalhadores não sindicalizados, com fulcro na normatividade internacional, corroborada pela permanência dos princípios constitucionais da unicidade sindical e da representação estruturada por categoria.
3. Da extensão dos efeitos da negociação coletiva
A questão da delimitação dos benefícios normativos aos filiados somente pode ser legitimamente suscitada num contexto antijurídico de eventual prevalência, mesmo após o fim do imposto sindical, do entendimento contrário à normatividade internacional e constitucional, no sentido de que os sindicatos não podem fixar em seus estatutos ou assembleias contribuição assistencial ou negocial para os não associados pela celebração de instrumentos normativos que lhe proporcionaram benefício.
Entretanto, tal deliberação assemblear redundaria em discriminação, pelo empregador, aos trabalhadores sindicalizados, que receberiam benefícios em valores superiores aos demais empregados, inclusive na perda de empregos. Ademais, “uma coisa é a qualidade de filiado, outra bem diferente a representação do grupo profissional ou econômica no sistema de unicidade sindical”, que é ampla e envolve a categoria como um todo.
A defesa dos direitos e interesses individuais e coletivos atribuída ao sindicato transcende ao quadro restrito de sócios, mas alcança os potenciais associados, ligados por um vínculo base que os congrega: a profissão, o âmbito da atividade empresarial, a dimensão estabelecida pelo trabalho em comum numa atividade econômica definida, ainda que por aproximação.
A liberdade sindical coletiva se sobrepõe a meramente individual. Tanto nas negociações coletivas como nas ações coletivas e na greve, a representação sindical é ampla. Como proclama o artigo 8º, III, da Constituição Federal, “ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas”. Reveste-se de especial importância a ação coletiva em que o sindicato atua representando toda a categoria, por representar, muitas vezes, o único meio de reivindicação efetiva dos direitos. Não se trata de substituição processual, mas, sim, de legitimação ordinária do sindicato para agir na defesa dos interesses e direitos dos integrantes da respectiva categoria.
4. Representação e representatividade coletiva
O momento atual, pós-reforma trabalhista, exige uma atuação sindical potente, organizada e profissional, o incremento da representatividade sindical, para o combate coletivo contra a perseguida erosão de direitos sociais fundamentais. Investidos do poder negocial, os sindicatos têm o instrumento poderoso de criar norma jurídica em benefício de toda a categoria que representam. É necessário assegurar as condições para o efetivo exercício desse poder coletivo, imprescindível para a caracterização do Estado Democrático de Direito. A começar, pelo reconhecimento da juridicidade do poder assemblear em estabelecer a contribuição negocial aos não sindicalizados, da cobrança da cota social de todos os integrantes da categoria, fundamental para a própria sobrevivência dos sindicatos. A capacidade econômica das entidades sindicais é o requisito primeiro da ação sindical, daí o golpe certeiro da Lei 13.467/17 exatamente na fonte de custeio.
No exercício das liberdades sindicais, a vontade coletiva deve prevalecer sobre a vontade individual representada pela excessiva valorização das liberdades negativas: não filiação a sindicato, não participação em movimento grevista, decisões judiciais limitadores do direito de manifestação, restrições na participação do custeio sindical. A supremacia do interesse coletivo sobre o interesse individual, de modo que a manifestação dos direitos sindicais ocupe o primeiro plano na construção do Direito do Trabalho brasileiro.
No Brasil, a ampla representação dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria em geral, inclusive em questões judiciais ou administrativas (artigo 8º, III, da Constituição) impulsionou o desenvolvimento das entidades sindicais. A Constituição de 1988 foi um divisor histórico-político no tocante à ação sindical, libertando as organizações operárias das amarras do controle estatal com a inauguração de um cenário normativo composto das mais diversas expressões da liberdade sindical, tanto no plano individual como — e fundamentalmente — no plano coletivo. Neste, destacam-se: a legitimação processual, o direito de greve, diferentes modalidades de financiamento e o reconhecimento da negociação coletiva de trabalho, todos em benefício da categoria profissional em geral.
O fortalecimento do ente sindical depende da assunção de uma postura comprometida com os ideários sindicais, quais sejam, os da luta contra a redução dos parcos direitos trabalhistas, para que o Direito do Trabalho reassuma seu prumo constitucional, o de melhoria da condição social dos trabalhadores.
Prumo constitucional e internacional, com vistas à execução do projeto político da OIT de trabalho decente, reverberado em suas convenções e recomendações, importantíssimos instrumentais jurídicos que devem ser cada vez mais utilizados pelos intérpretes e aplicadores do Direito do Trabalho. É imperativo o resgate do Direito do Trabalho no Brasil, capturado e hegemonizado por uma filosofia individualista, que vem desvirtuando sua finalidade, de promover a justiça social.
Nesse desiderato, o sindicato deve estar conectado com a realidade local, como também com os movimentos sociais e entidades congêneres, inclusive em âmbito internacional. Promover uma democrática ação sindical nos locais de trabalho, no cotidiano laboral, impregnado por condutas antissindicais e, ao mesmo tempo, iniciativas de maior alcance. Ser regional e universal ao mesmo tempo, como a prosa de João Guimarães Rosa, conforme revela o seguinte fragmento do Grande Sertão: Veredas: “Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso”.