Repleta de situações controversas, a dita maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro que o país já tocou trouxe consigo o protagonismo de uma instituição específica: o Ministério Público.
A operação “lava jato” fomentou aos poucos o endeusamento de procuradores que vociferavam a luta contra impunidade enquanto assinavam denúncias com base exclusiva em delação.
Na opinião do advogado Horácio Bernardes Neto, embora a operação tenha sido uma “lavagem de alma” e um “show pirotécnico maravilhoso”, ela passou limites. Seu efeito colateral foi ter deixado o MP “se achar o guardião de todas as leis, o órgão supremo da República, que pode tudo e que não tem fiscalização nenhuma”.
De acordo com Bernardes, motivado pela midiatização da “lava jato”, o órgão passou a investigar, atribuição que é da polícia. “Falta responsabilidade do Ministério Público, porque nós, advogados, temos responsabilidade. Se eu fizer alguma coisa errada a Ordem [dos Advogados] vai caçar minha licença. Se o Ministério Público quiser escrever que você é estelionatário e traficante de drogas, e disser que precisa te investigar; ele escreverá e no dia seguinte estará no jornal”, afirma em entrevista à ConJur.
Aos 64 anos, Horácio é o primeiro brasileiro a comandar a Associação Internacional de Advogados (IBA, na sigla em inglês), instituição que reúne mais de 80 mil advogados de diversos cantos do mundo.
Formou-se em Direito pela USP e tem pós-graduação pela Universidade de Köln, na Alemanha, onde morou durante alguns anos. Desde 2011 é um dos sócios do escritório Motta Fernandes, com foco em fusões e aquisições, segmento no qual é especialista.
Leia abaixo a entrevista:
ConJur — Como analisa o aumento da criminalização da advocacia?
Horácio Bernardes — A criminalização é péssima e está sendo cada vez mais fomentada. O que as pessoas não entendem é que todas as pessoas têm direito à defesa e o advogado é fundamental para isso. Se algo ilegal acontecer, você vai querer ter um advogado. Amigos meus dizem: “Imagina só defender o Lula”. E eu respondo que alguém precisa defender o Lula, alguém precisa defender o Palocci. Claro que há prerrogativa como advogado. Eu posso não querer defender estuprador ou um traficante de droga, mas alguém tem que defender!
ConJur — Há paridade de armas entre acusação e defesa?
Horácio Bernardes — Falta responsabilidade do Ministério Público, porque nós, advogados, temos responsabilidade. Se eu fizer alguma coisa errada a OAB vai caçar minha licença. Se o Ministério Público quiser escrever que você é estelionatário e traficante de drogas e precisa te investigar, ele escreverá e no dia seguinte estará no jornal. Você nunca mais limpa sua reputação. Não adianta ser publicado dias depois que não é traficante, porque grande parte da população não vai ver e continuará achando que você é traficante.
ConJur — O protagonismo do MP incomoda?
Horácio Bernardes — Esse endeusamento do Ministério Público, desse Deltan Dallagnol, que se deu com a “lava jato”, foi uma coisa meio forçada. O MP tinha é que ter mais responsabilidade. E eu acho que faz muito mal para a Justiça essa midiatização de tudo que está ocorrendo no Brasil. O MP escreve algo que nem é denúncia, às vezes é só uma petição, e já vai para a mão da grande mídia. Daí a imprensa publica e a discussão do tribunal é completamente aberta, todo mundo escuta, ninguém entende nada e isso é muito ruim.
ConJur — O senhor fala em responsabilidade do MP, mas em que sentido?
Horácio Bernardes — Devia-se questionar o promotor para saber qual foi o embasamento dele. “Ah me baseei porque um cara me contou”, responderia o promotor. E aí continua: “Quem contou?”; “Ah, um cara lá da minha rua”; “Mas você acha razoável fazer uma petição sem nenhuma espécie de análise? Então você está suspenso”. Esse é que é o negócio.
ConJur — Esse tipo de julgamento imediatista é algo exclusivo do Brasil?
Horácio Bernardes — Não vejo isso acontecer em outros países. O Ministério Público esquece que não pode jogar palavras ao vento, e que ele não deve investigar, mas sim a polícia. Há um exagero do Ministério Público e muito motivado pela “lava jato”. A “lava jato” foi realmente uma lavagem de alma do Brasil, não tem dúvida nenhuma. O país precisava daquilo, foi um show pirotécnico maravilhoso e todo mundo ficou feliz. A mesma coisa com o dia da prisão da Lula. Independente de gostar ou não dele e do PT, a grande maioria dos brasileiros estava esperando por aquilo.
Teve ainda nosso próprio orgulho brasileiro de ter sido o país onde houve a maior ação contra corrupção no mundo. Sergio Moro realmente trabalhou bem no sentido de que ele foi “comendo pela beirada”. Foi uma operação muito bem feita, mas teve muitos efeitos colaterais, como essa coisa do Ministério Público de repente passar a se achar o guardião de todas as leis, o órgão supremo da República, que pode tudo e que não tem fiscalização nenhuma.
ConJur — Um dos institutos mais usados na operação “lava jato” foi a delação premiada. Como analisa seu uso?
Horácio Bernardes — Confessar não importa nada e é a pior das provas. Originalmente e na teoria, a delação é apenas um instrumento probatório a mais, depois tem que justificar com provas, e, se não justificar com prova, não pode valer nada. A delação está sendo usada com caráter midiático, não tem sido bem aplicada no Brasil. Se bem aplicada, é um belíssimo sistema de persecução penal.
ConJur — É muito comum a crítica de que o Brasil importa leis e costumes. Mas o país exporta instrumentos jurídicos?
Horácio Bernardes — O Brasil exporta uma proteção eficiente das prerrogativas do advogado. A forma como a profissão é regulada aqui é realmente exemplar. A OAB faz questão de lutar pelas prerrogativas profissionais. Em outros países mais civilizados as prerrogativas dos advogados estão sendo sacrificadas, ou o poder público está tentando sacrificar aspectos como o sigilo profissional, ou outros em favor de investigações de assuntos considerados mais dramáticos, como o terrorismo. Na Inglaterra, por exemplo, se o advogado verificar que um cliente está propositalmente fazendo alguma coisa para fraudar o pagamento de impostos, é obrigado a denunciar.
ConJur — A quantidade de advogados diplomados no país é alvo de críticas constantes, inclusive da OAB. No entanto, faculdades de Direito continuam surgindo indiscriminadamente.
Horácio Bernardes — Essa reclamação de que há muitas faculdades de Direito existe no mundo inteiro. Em todos os lugares ouço que tem muita faculdade de Direito, muita gente se formando e entrando no mercado. Em países como o nosso, no qual se abrem faculdades de Direito, o MEC faz uma verificação que nem sempre é muito profunda. São Paulo hoje tem mais faculdades de Direito que os Estados Unidos. E saem essas hordas de advogados que geralmente não sabem nada, que nunca estudaram ou leram.
Na verdade, o problema é muito mais social de sentir a dor que será para essas famílias que estão fazendo sacrifícios enormes para manter um sujeito na faculdade, que eu sei que é de terceira categoria, uma porcaria, que não vai dar em nada e que custa metade do orçamento da família inteira. Minha vontade é dizer “bota esse cara num Senac para ele aprender soldagem, para ele aprender encanamento, que vai ser muito melhor”. No Brasil há muito esse negócio de que as pessoas têm que ser doutoras.
ConJur — Mas a diferença é muito grande?
Horácio Bernardes — Eu tenho muito dó desses meninos que estão estudando Direito em faculdades de terceira categoria e não estão aprendendo nada. Verifico pelos meus estagiários que se eles não enfiarem a cara no livro e estudarem feito condenados, não aprenderão nada em faculdade nenhuma. Claro que se for na USP, na PUC, na FGV, no Mackenzie, o nível é muito melhor do que em outras milhares que têm por aí. Mesmo assim, o sujeito que quer ser advogado tem que estudar diariamente. Cada dia que você não estuda você é menos advogado. Hoje eu tenho lá duas leis que colocaram em cima da minha mesa para eu ler, conversar com meu sócio e ver se é aplicável ao meu cliente ou não. Ou seja, vou ter que dar uma estudada. Estou com 64 anos e nunca fiquei um dia sem me atualizar um pouquinho.
ConJur — O que acha da obrigação de os donos escritórios serem advogados?
Horácio Bernardes — Fico muito orgulhoso de ser brasileiro, porque a OAB é atuante e há várias coisas que se pode discutir. Hoje, em quase todos os países, há possibilidade de uma parte do capital do escritório de advocacia estar na mão de não advogados. Na Itália, por exemplo, até 49% de cotas do escritórios podem ficar na mão de investidores. Já na Inglaterra a banca pode ser inteiramente de investidores que não são advogados. No Brasil, ainda tem a uniprofissionalidade, quer dizer, sócios de escritórios de advocacia só podem ser advogados, e a sociedade deve ser registrada na OAB.
ConJur — O advogado brasileiro tem condição para trabalhar dessa forma?
Horácio Bernardes — Na IAB entendemos que a advocacia tem que ser liberalizada. Particularmente, tenho várias restrições com uma sociedade ser controlada por pessoas de negócios e não advogados. A profissão não pode ter características mercantis no Brasil, e eu confio nisso. Por outro lado, podíamos admitir que escritórios brasileiros pudessem se unir a grandes redes internacionais. Fui contra isso durante muito tempo, mas agora a advocacia brasileira já está madura o suficiente. Não estamos mais fracos no mercado, os escritórios grandes brasileiros têm estruturas, conhecimento, tecnologia comparáveis a escritórios americanos.
ConJur — E quanto à atividade de consultoria e auditoria?
Horácio Bernardes — Em vários países as consultorias e auditorias são proprietárias dos maiores escritórios de advocacia. Entendo que isso é descabido. O advogado é feito para receber o segredo dos clientes e guardar. Auditoria é feita para descobrir e divulgar. É um choque muito grande no procedimento ético. É a mesma coisa que fazer uma sociedade entre um médico e uma funerária: os interesses são diferentes.
ConJur — Há uma preocupação da advocacia em perder espaço de trabalho com o aumento do uso de inteligência artificial. Como o advogado deve lidar com isso?
Horácio Bernardes — A tecnologia vai substituir em grande parte o serviço, mas não o aspecto estratégico. A máquina não vai substituir a estratégia que tem que ser tratada pelo ser humano e a decisão que deverá ser tomada. Os advogados têm de estar preparados para lidar com tecnologia como qualquer outro profissional e já há muitos buscando especializações em engenharia, arquitetura da informação, dentre outros. Mais do que se preocupar com a tecnologia, o advogado não pode negociar com o Estado de Direito, não se pode negociar com a democracia, com os direitos fundamentais.