Além de acabar com estabilidade do trabalhador, medida provisória do governo pode incentivar que empresas não dispensem seus funcionários para o home office.
“Me sinto um criminoso, de sair na rua, pegar metrô, de ser um vetor. Já pensou se eu transmito o vírus pra minha mãe?”. João (nome fictício) é economista e, portanto, poderia trabalhar de casa, mas está sendo obrigado pela empresa a ir ao escritório. Além do medo de pegar a covid-19 e de ser obrigado a infringir as recomendações de saúde de ficar em casa, ele não sabe que, se contrair o vírus no trabalho, pode ser demitido assim que voltar da licença médica. Foi justamente este um dos precedentes permitidos pela medida provisória (MP) 927/2020, publicada neste domingo (22) pelo governo e que prevê flexibilizações trabalhistas em tempos de pandemia.
O texto gerou fortes críticas não apenas nas redes sociais, mas também do Ministério Público do Trabalho, de associações de juristas e inclusive do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, por permitir, entre outras mudanças, que empresas possam suspender por quatro meses contrato e salário de seus funcionários, deixando os sem rendimentos. Após repercussão negativa, Bolsonaro recuou e postou nas redes sociais que “determinou a revogação” do artigo 18 (o que permitia a suspensão). No entanto, nenhuma alteração oficial ao texto ainda foi feita – e, pela mensagem do presidente, os demais pontos da MP não serão alterados.
Um deles, o artigo 29, afirma que os “casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais”, ou seja, não serão considerados acidentes ou doenças de trabalho, exceto quando o trabalhador conseguir comprovar que essa contaminação aconteceu no escritório, comércio ou fábrica.
egundo especialistas trabalhistas ouvidos pela Repórter Brasil, a relação entre a doença e o ambiente de trabalho é um dos poucos casos hoje em que o trabalhador possui garantia de estabilidade no emprego – após retornar da licença médica, ele não pode ser demitido durante 12 meses. Ou seja, ao dificultar a responsabilização da empresa, o governo abre a porta para a demissão justo em um momento de possível crise econômica generalizada.
“Todas as pessoas que não têm escolha de parar de trabalhar, como um porteiro, terão que comprovar que adquiriram o vírus no trabalho. Mas é complicado comprovar porque é uma doença viral, e o corpo elimina o vírus depois de um tempo”, analisa Valdete Souto Severo, presidente da Associação de Juízes para a Democracia.
Além de retirar direitos do trabalhador, a MP incentiva que empresas continuem em funcionamento normal e colocando seus trabalhadores em risco. “Esse artigo mostra para quem a lei foi feita: para a classe patronal. É como se o governo estivesse dando um salvo-conduto para a empresa: ‘coloca esse trabalhador em exposição’”, afirma Severo.
O advogado trabalhista Fernando José Hirsch, sócio do escritório LBS Advogados, concorda. “É uma medida para proteger o empresário, para fazer com que as empresas funcionem, o que é o inverso do que seria recomendado do ponto de vista da saúde”, afirma. Em caso de contaminação no escritório, o trabalhador poderia alegar que adquiriu o vírus por ser impedido de fazer quarentena, afirma Hirsch, mas vai precisar demonstrar que estava sem máscara, que não tinha álcool em gel e que a contaminação não ocorreu em outro lugar, o que não é tão simples.
Ao tornar subjetiva a responsabilização da empresa em caso de contaminação, a MP também tem grave impacto nos casos de mortos em decorrência do vírus, já que dificulta a obtenção de indenização na Justiça. Isso afeta não apenas as famílias de funcionários contaminados, mas também aquelas em que algum membro do grupo de risco morreu após ser exposto a um trabalhador infectado em ambiente profissional. “A família fica totalmente sem respaldo e isso vai na contramão do que decidiu o Supremo Tribunal Federal recentemente em relação a esta questão da responsabilidade do empregador por dano decorrente por doenças no trabalho ou exposição a riscos. A responsabilidade é objetiva do empregador, segundo o STF”, analisa a presidente da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (Abrat), Alessandra Camarano Martins.