“Brasil e China têm investido em conhecer um ao outro, enviando acadêmicos, especialistas, promovendo o intercâmbio e facilitando o comércio muito antes de Bolsonaro. Há um grande potencial a ser explorado pelas empresas de ambos os lados e o governo brasileiro passa a entender isso”.
Por Pedro Rebelo, de Xangai
Para compreender as relações triangulares entre China-Brasil-EUA e como o Brasil se comporta em referência à China, é necessário primeiro entender os pontos de vista dos dois países e como eles se relacionam entre si. A China possui um Estado, governo e sociedade muito mais coesos e pragmáticos, enquanto o Brasil está em uma fase de reflexão sobre suas políticas e tradições, especialmente política externa. Nesta luta, diferentes atores, perspectivas e opiniões se envolvem com o governo de Bolsonaro e outros entes políticos para criar o que é percebido como uma posição brasileira atual em seus assuntos internacionais, incluindo a relação do país com a China e os EUA. Nesse sentido, as relações com a China não têm mudado muito no governo Bolsonaro, apesar do que sua campanha eleitoral sugeriria.
A abordagem de Bolsonaro em relação à China foi agressiva devido à sua retórica baseada no combate ao Partido dos Trabalhadores, ao comunismo e também pelo seu viés nacionalista. Ao mesmo tempo em que dizia que os Estados Unidos seriam um parceiro-chave em seu futuro governo, já que em sua perspectiva as relações EUA-Brasil haviam sido prejudicadas por governos anteriores, ele acabou criando um ambiente de conflito, colocando esses dois principais parceiros do Brasil em lados opostos em questão de relações comerciais, quando eles nunca precisavam estar. Embora um núcleo de eleitores tenha aplaudido seu discurso contra o gigante asiático, essa narrativa foi diretamente repelida por vários setores da sociedade brasileira; de políticos nos níveis federal e local a acadêmicos e empresários, especialmente os exportadores. A mobilização pela manutenção de um bom relacionamento com a China foi tal que o embaixador chinês foi convidado ao Itamaraty para receber uma explicação sobre as palavras de Bolsonaro e ouvir que o governo brasileiro mantém as relações com a China no mais alto nível.
Retórica e realidade
Bolsonaro percebeu a colisão entre sua retórica e a realidade quando foi empossado como presidente. A realidade é que as relações entre Brasil e China são muito maiores que seu governo, assim com são também as com os EUA. Desde o restabelecimento das relações diplomáticas entre Brasil e China em 1974, diferentes governos vêm trabalhando para consolidar o bom relacionamento entre os dois países que se beneficiam de não ter litígios históricos, como os que a China tem com países da Europa ocidental, seus vizinhos e os EUA. A rede institucional que envolve China e Brasil é densa e composta principalmente por:
. Satélites de Recursos Terrestres China-Brasil (CBERS), criado em 1988;
. Um grupo parlamentar de amizade criado em 1993;
. Comissão de Alto Nível de Consulta e Cooperação (COSBAN), criada em 2004, composta pelos vice-presidentes dos dois países, com cinco reuniões até o momento, a última em 2019;
. BRICS, presidido pelo Brasil em 2019 e inaugurado em 2006;
. O Diálogo Estratégico entre Ministros das Relações Exteriores, em 2012, evoluiu para o Diálogo Global Estratégico entre Ministros das Relações Exteriores, pois o Brasil e a China tinham o objetivo de atuar em coordenação em escala global. O último encontro foi em 2019.
Tal esforço institucional para a cooperação surge de um entendimento mútuo de complementaridade entre as duas nações, no qual o Brasil pode fornecer à China o que esta mais precisa: alimentos e matérias-primas para manter as atividades diárias de 1,4 bilhão de pessoas. Enquanto a China pode fornecer ao Brasil bens manufaturados, tecnologia, infraestrutura e investimentos. Isso se traduz na economia, com a China se tornando o principal parceiro comercial do Brasil em 2009 e atingindo aproximadamente 100 bilhões de dólares em balança comercial em 2018, com superávit de US $ 29 bilhões para o Brasil. É importante destacar que este ano pode ser considerado uma excepcionalidade, em razão da guerra comercial que levou a China a favorecer o Brasil sobre os EUA na compra de commodities.
Igualmente importante é entender que em comércio exterior os Estados Unidos podem ser considerados concorrentes do Brasil em commodities como a soja, o etanol e outros produtos agrícolas. O que dificulta para este setor chave da economia brasileira o aprofundamento das relações comerciais com os EUA, em detrimento da China. A guerra comercial é vista como uma oportunidade para o Brasil, pois a China tem que buscar outros fornecedores para os produtos que deixará de comprar dos EUA, pelo menos no momento presente. A pergunta a se fazer é: se e quando EUA e China se acertarem, como ficará o Brasil? Ideias sobre isso mais adiante.
Em resposta à posição inicial de Bolsonaro em relação à China, o gigante asiático reuniu seus esforços em duas perspectivas: uma é tentar convencer Bolsonaro por meios suaves de que a China é um bom aliado, apoiará o Brasil em escala global (como já estabelecido em 2012) e investirá mais no país, principalmente em projetos de infraestrutura. Um exemplo desse apoio político é uma recente entrevista de Qu Yuhui, Ministro Conselheiro da Embaixada da China no Brasil, na qual ele defende a posição do governo brasileiro em relação à floresta amazônica e critica os países europeus por suas declarações quanto à proteção da Amazônia, em um sinal claro para Bolsonaro. A segunda perspectiva é conversar com outros atores ou tomadores de decisão que podem influenciar Bolsonaro ou que não padecem de influência direta do executivo federal.
Com relação a essa perspectiva, somente este ano a China recebeu visitas de pelo menos cinco delegações oficiais ou de empresários de diferentes estados brasileiros, principalmente em busca de investimentos para energia renovável, infraestrutura e fábricas. Três desses estados estão em conversas sobre abertura de postos de representação permanente na China. Um deles é São Paulo, inclusive com grande suporte do governo de Xangai.
Essa para-diplomacia é uma via de mão dupla; os estados brasileiros buscam investimentos e oportunidades que foram cortadas devido à crise financeira e também para proteger suas relações com a China, colocados em alerta pela campanha de Bolsonaro. A China, como os estados, quer proteger e aprofundar suas relações com o Brasil em nível não só federal uma vez que o Brasil é também um recurso muito importante na disputa com os EUA, pela capacidade de produção nacional.
Aproximação entre nações
Bolsonaro, afinal, não está em posição de escolher entre a China e os Estados Unidos e, apesar de sua vontade pessoal de favorecer os EUA, a aproximação do Brasil e China é imponderável. Os próprios poderes que o elegeram não querem a escolha entre um ou outro, como o setor de agronegócio, altamente sensível ao comércio exterior e que tem a China como seu maior comprador. Seu governo precisa de pragmatismo e a China é importante demais para ser negligenciada ou ignorada de qualquer forma. A importância reside não só no na relação comercial atual entre os dois, mas também no potencial econômico ainda a ser explorado.
Dada essa observação, uma postura mais propositiva em relação à China já pode ser vista nas ações do governo. Em reunião em julho de 2019, os Ministros das Relações Exteriores da China e do Brasil falaram sobre os caminhos da relação dos dois países, abordando a percepção de que a relação entre os dois é boa, lucrativa, mas pode ser mais focada. O Brasil quer incentivar as exportações de frutas, carnes, algodão e produtos industriais, pois a China deseja diversificar suas fontes de manufatura. Além disso, as relações Brasil-EUA têm certa maturidade comercial, enquanto as relações econômicas e a cooperação com a China são, apesar de grandes, ainda rasas e com muitas oportunidades não atendidas.
Brasil e China têm investido em conhecer um ao outro, enviando acadêmicos, especialistas, promovendo o intercâmbio e facilitando o comércio muito antes de Bolsonaro. Há um grande potencial a ser explorado pelas empresas de ambos os lados e o governo brasileiro passa a entender isso. O vice-presidente Hamilton Mourão visitou a China em maio, quando o COSBAN foi reativado após uma pausa nas negociações desde 2015 e Bolsonaro também estará visitando a China este ano. Sobre o atrito entre os EUA e a China, o governo brasileiro não tem motivos racionais para escolher os lados chinês ou americano, permanecendo, como orienta a tradição, em uma posição neutra e amigável.
Quanto às relações entre os três países, as atuais circunstâncias são favoráveis ao Brasil, pois a guerra comercial é um problema maior e naturalmente força a China a se voltar para cá. Tal pode ser visto como uma janela de oportunidade, mas também um risco. Por um lado, a necessidade chinesa por alternativas aos EUA pode desaparecer logo após a guerra comercial ser resolvida. Enquanto o Brasil tenta se distanciar da China, o Partido Comunista Chinês pode também concordar que, se for para o bem de suas relações com os EUA e de sua economia, sacrificar o aumento ou a manutenção da alta cooperação com o Brasil sairia barato.
Outra visão, esta mais profunda, é que o acirramento da relação entre EUA e China seria só questão de tempo, uma vez que potências ascendentes historicamente entram em conflito com a dominante, por vezes resultando em guerras, tese já bastante elaborada por teóricos das Relações Internacionais e também com exemplos como as do Peloponeso e guerras Franco-prussianas e, por essa visão, o Brasil estaria em uma posição de destaque, já que como a razão principal do atrito entre China e EUA seria a transição de poder, a guerra comercial seria só uma consequência de tal e tanto a China como os EUA sabem disso. A normalização da relação entre os dois para patamares anteriores a Trump traz consigo o entendimento e o acordo quanto a questões complexas em relação à tecnologia e influenciam em diferentes esferas e regiões, dilemas sobre os quais os dois países talvez não estejam preparados para acordar. Portanto, os EUA e a China podem até resolver pontualmente divergências sobre a guerra comercial, mas com a tensão, a China buscará alternativas mais sólidas aos EUA e o Brasil pode ser o país escolhido, se compreender e se posicionar corretamente nesta questão.
*Pedro Rebelo é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Católica de Brasília, mestrando em Política e Economia Chinesa pela Shanghai JiaoTong University e consultor em relações Brasil-China na Câmara Chinesa de Comércio no Brasil.