A paz universal e duradora só pode ser estabelecida se for baseada na justiça social.”
(Preâmbulo da Constituição da Organização Internacional do Trabalho)
Introdução
Neste ano em que se comemora cem anos da instituição da Organização Internacional do Trabalho, é preciso voltar o olhar para os objetivos de sua constituição, tendo como perspectiva o trabalho da mulher, a igualdade, a dignidade e o trabalho decente.
Propomo-nos neste artigo a uma reflexão conjunta dos avanços perpetrados no mundo do trabalho para a mulher trabalhadora no decorrer destes cem anos e os retrocessos sociais que avançam a passos largos, quando o tema percorre a questão da igualdade e equidade de gênero.
Com os retrocessos em pauta, estaciona-se todo o trabalho percorrido durante esse centenário, nos chamando a (re)iniciar jornadas de lutas, dentro de um cenário de desconstrução de direitos sociais e de ataque ao Estado Democrático de Direito, que nos lança para trás em séculos e que nos exige o compartilhamento, a unidade, a resistência e a alteração na abordagem com a sociedade como forma de convencer e reestruturar as lutas sociais, para que perdas de identidade e de valores não sejam o mote instituído e continuado.
A partir da história da Organização Internacional do Trabalho, traçaremos um diálogo com o(a) leitor(a), percorrendo movimentos atuais elaborados pela sociedade brasileira, que contribuem para regressões que violam princípios constitucionais de dignidade da pessoa humana e cidadania, garantidores do Estado Democrático.
Neste diálogo, buscaremos fontes de resistência e alinhamento único que objetivam estacionar os retrocessos instalados, avançando conjuntamente, em uma unidade social que represente o chamamento de Judith Butler, para Corpos em Aliança e a Política nas Ruas.
História e objetivos OIT — diálogo com a Constituição Federal de 1988
“Fundada em 1919 como parte do Tratado de Versalhes, que pôs fim à Primeira Guerra Mundial, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem como objetivo promover a justiça social. Ganhadora do Prêmio Nobel da Paz em 1969, a OIT é a única agência das Nações Unidas que tem estrutura tripartite, na qual representantes de governos, de organizações de empregadores e de trabalhadores de 183 Estados-membros participam em situação de igualdade das diversas instâncias da Organização.
A OIT é responsável pela formulação e aplicação das normas internacionais do trabalho (Convenções e Recomendações) As Convenções, uma vez ratificadas por decisão soberana de um país, passam a fazer parte de seu ordenamento jurídico. O Brasil está entre os membros fundadores da OIT e participa da Conferência Internacional do Trabalho desde sua primeira reunião…
Na primeira Conferência Internacional do Trabalho, realizada em 1919, a OIT adotou seis convenções. A primeira delas respondia a uma das principais reivindicações do movimento sindical e operário do final do século XIX e começo do século XX: a limitação da jornada de trabalho a 8 horas diárias e 48 horas semanais. As outras convenções adotadas nessa ocasião referem-se à proteção à maternidade, à luta contra o desemprego, à definição da idade mínima de 14 anos para o trabalho na indústria e à proibição do trabalho noturno de mulheres e menores de 18 anos”[1].
Desde sua fundação em 1919, a OIT instaurou e desenvolve um sistema de normas internacionais que possuem como objetivo a promoção de oportunidades para que mulheres e homens tenham acesso ao trabalho decente em condições de igualdade, liberdade, segurança e dignidade na busca pela justiça social, que estão em perfeita consonância com artigos constantes da Constituição cidadã ao instituir o Estado Democrático de Direito: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL ( Preâmbulo da Constituição federal de 1988).
“Os fundadores da OIT reconheceram em 1919 que a economia global necessitava de regras claras para garantir que o progresso econômico estivesse em sintonia com a justiça social, a prosperidade e a paz para todos.”[2]
Como fundamento básico, constante na Declaração de Filadélfia da OIT de 1944, o ser humano vem ao centro e a comunidade internacional reconhecia que “o trabalho não é uma mercadoria”, porque o trabalho faz parte da vida diária de todos e todas e o fator determinante para se alcançar a dignidade e o bem-estar para o desenvolvimento como seres humanos.
Tais fundamentos, que colocam o ser no centro do desenvolvimento e o trabalho como fator de desenvolvimento social, também vêm estampados na Constituição Federal, no artigo 1º, incisos I a IV, que dialoga com o artigo 170, que estabelece que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” e também com o artigo 193: “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”.
A estrutura tripartite da OIT, que reúne representantes dos governos, dos empregados e dos trabalhadores, é a forma igualitária para que assuntos relacionados com políticas laborais e sociais sejam colocadas em pauta e a cada ano são estabelecidas políticas gerais, aditando também novas normas internacionais do trabalho e também planos de trabalho para a OIT.
Neste ano de 2019, em seu centenário, a OIT tem como tema central “impulsionar a Justiça Social, promover o trabalho decente”; dentre os planos de ação merece destaque especial, por se tratar da perspectiva deste artigo, o Plano de Ação da OIT sobre a igualdade de gênero 2018-2021.
Segundo o diretor da OIT, ao se fazer um balanço da situação no mundo do trabalho para os desafios a serem enfrentados no segundo século de existência, uma das características que mais chamou a atenção foram os escassos progressos alcançados em nível mundial em respeito à igualdade e empoderamento das mulheres trabalhadoras, o que levou após análises de pedidos de sistemas internacionais de políticas de gênero a compromisso da OIT para estar conglobada e alinhada com a família das Nações Unidas para apoiar política de apoio para a agenda de 2030 para o desenvolvimento sustentável.
Equidade de gênero como política de sustentabilidade
A definição mais comum de sustentabilidade — “O desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades” — nos remete a uma tratativa sobre as questões de gênero, de igualdade, de respeito aos direitos sociais e democráticos, como política sustentável que não se restringe ao respeito ao meio ambiente, mas também ao respeito a tudo que representa continuidade de vida e vida com dignidade. O contrário disso é tóxico e poluente.
O campo do desenvolvimento sustentável pode ser dividido em quatro componentes: a sustentabilidade ambiental, a sustentabilidade econômica, a sustentabilidade sociopolítica e a sustentabilidade cultural.
“A sustentabilidade ambiental consiste na manutenção das funções e componentes dos ecossistemas para assegurar que continuem viáveis — capazes de se auto-reproduzir e se adaptar a alterações, para manter a sua variedade biológica. É também a capacidade que o ambiente natural tem de manter as condições de vida para as pessoas e para os outros seres vivos, tendo em conta a habitabilidade, a beleza do ambiente e a sua função como fonte de energias renováveis.
A sustentabilidade econômica é um conjunto de medidas e politicas que visam a incorporação de preocupações e conceitos ambientais e sociais. O lucro passa a ser também medido através da perspectiva social e ambiental, o que leva à otimização do uso de recursos limitados e à gestão de tecnologias de poupança de materiais e energia. A exploração sustentável dos recursos evita o seu esgotamento.
A sustentabilidade sociopolítica é orientada para o desenvolvimento humano, a estabilidade das instituições públicas e culturais, bem como a redução de conflitos sociais. É um veículo de humanização da economia, e, ao mesmo tempo, pretende desenvolver o tecido social nos seus componentes humanos e culturais.
Vê o ser humano não como objeto, mas sim como objetivo do desenvolvimento. Ele participa na formação de políticas que o afetam, decide, controla e executa decisões.
A sustentabilidade cultural leva em consideração como os povos encaram os seus recursos naturais, e sobretudo como são construídas e tratadas as relações com outros povos a curto e longo prazo, com vista à criação de um mundo mais sustentável a todos os níveis sociais. A integração das especificidades culturais na concepção, medição e prática do desenvolvimento sustentável é fundamental, uma vez que assegura a participação da população local nos esforços de desenvolvimento”[3].
Planos de ações coletivas e o diálogo de normas
Intercalando as políticas de sustentabilidade com a política da OIT sobre igualdade de gênero, o somatório se revela absolutamente confluente e necessário para avanços em questões de direitos sociais, que vem sofrendo retrocessos a passos largos e que nos conecta muitas vezes com a barbárie em termos da balança da desigualdade social.
Judith Butler, na obra Corpos em Aliança e a Política nas Ruas, nos sugere que a política de gênero “deve fazer alianças com outras populações amplamente caracterizadas como precárias”.
Ela aponta que “certas formas de mobilização de gênero que buscam estabelecer os direitos das minorias de gênero que buscam estabelecer os direitos das minorias de gênero ou de pessoas fora da conformidade de gênero a andar nas ruas livremente, a manter o emprego e combater o assédio, a patologização e a criminalização. Para que a luta pelos direitos das minorias sexuais e de gênero seja uma luta por justiça social, isto é, para que ela seja caracterizada como um projeto democrático radical, é necessário perceber que somos apenas uma das populações que têm sido, e continuam sendo expostas a condições precárias e perdas de direitos. Além disso, os direitos pelos quais lutamos são direitos plurais, e essa pluralidade não está circunscrita, de antemão, pela identidade; isto é, não constitui uma luta apenas de determinadas identidades, e certamente é uma luta que procura expandir aquilo a que nos referimos quando falamos de “nós”. Assim, o exercício público de gênero, dos direitos ao gênero, pode-se dizer, já é um movimento social, que depende mais fortemente das ligações entre as pessoas do que de qualquer noção de individualismo. O seu objetivo é se opor ás forças e aos regimes militares, disciplinadores e reguladores que nos exporiam á condição precária”[4].
Neste contexto da luta pelos direitos plurais, não se pode dissociar as pautas reivindicatórias que buscam a igualdade e o cumprimento de preceitos constitucionais que constituem o Estado Democrático de Direito. Não há incompatibilidade entre as pautas dos movimentos LGBTI+ com os movimentos sindicais e a greve geral, marcada contra a reforma da Previdência, por exemplo.
Não há incompatibilidade de pautas para um rede sustentável da economia com a política de igualdade entre os povos, pois a sustentabilidade é ampla e significa não destruir o futuro das próximas gerações, que está atrelado a tudo que signifique um plano de dignidade e igualdade social.
As pautas são únicas: da garantia da igualdade, da dignidade, da não precarização.
Não se pode estabelecer divisionismos dentro dos movimentos sociais. É preciso estabelecer parâmetros para que a defesa da igualdade esteja à frente de todo e qualquer papel de reivindicação.
O divisionismo nos afasta, enquanto que a unidade nos fortalece.
E viver a democracia em sua plenitude significa afastar o egoísmo e o individualismo, para que os movimentos sejam concatenados e plurais, permitindo que as discussões sejam uníssonas. Os verdadeiros avanços de uma sociedade passam obrigatoriamente por princípios de solidariedade e união de propósitos que ressignifiquem o ser social e que (re)adapte a sociedade brasileira para o enfrentamento necessário em tempos de crise e de autoritarismo instalados.
Nesta linha de raciocínio, verificamos que as instituições e legislações aplicadas buscam cada vez mais o compartilhamento, o que pode ser demonstrado, por exemplo, pela própria constituição da OIT (tripartite). Podem ser observadas, ainda, na coesão de princípios da constituição cidadã com normas internacionais do trabalho em questões de gênero, convenções estas das quais o Brasil é signatário.
Podemos intercalar o diálogo em um aprofundamento com os movimentos sindicais que precisam expandir suas lutas para dentro de todas as lutas de igualdade e vice-versa.
No plano de desenvolvimento da OIT para 2018-2030, observa-se a incorporação das pautas de gênero em todos os aspectos que permeiam o mundo do trabalho, que para alcançar melhores esforços levarão à pauta de forma simultânea algumas frentes, divididas entre igualdade de ocupação de postos (50%); igualdade de participação e representação das mulheres e homens em atividades de decisão; planos de ação como instrumento de operação para a incorporação das questões de gênero.
Estes plano de ação, em funcionamento simultâneo, garantem a aplicação da política de igualdade entre os sexos e as incorporações das questões de gênero, que requerem compromisso, e participação efetiva em todos os setores:
“Aplicación
11. La aplicación de esta política de igualdad entre los sexos e incorporación de las consideraciones de género requiere el compromiso, la participación y la contribución constantes de todos y cada uno de los miembros del personal. La responsabilidad y la obligación de rendir cuentas en lo que respecta a la aplicación eficaz de dicha política incumben a los/las administradores/as principales, a los/las directores/as regionales y a los/as administradores/as de programas. Los/las especialistas en cuestiones de género y los puntos focales desempeñarán una función especial de catalizadores. En este proceso se informará y consultará plenamente al Comité del Sindicato del Personal.
12. La presente política forma parte de la transición en curso para convertir a la OIT en una Organización moderna y eficiente, capaz de hacer frente a los desafíos que están surgiendo. El compromiso de la OIT para con la igualdad entre los sexos se reflejará en el nuevo sistema de formulación estratégica del presupuesto, en las nuevas estrategias y políticas de recursos humanos, en las funciones de supervisión y evaluación y en las actividades de cooperación técnica. El Consejo de Administración y nuestros mandantes estarán plenamente informados de los avances realizados para aplicar dicha política”[5].
Feminismo, pluralismo e democracia
Cezar Britto, no artigo “A Democracia e as Mulheres: Uma história em Construção”[6], nos convida à reflexão para o verdadeiro significado da democracia com o olhar dinâmico e sob a perspectiva de gênero.
Para ele, “democracia com a exclusão das mulheres é sinônimo de democracia de papel, uma história que tristemente está inacabada, embora com o crescente ativismo feminista no Brasil, resta-nos esperança e muita luta para construir uma nova História em nosso país”.
O momento é o de reescrever uma nova história em nosso país, respeitando os passos dados, os sangues derramados e as lutas já imantadas.
Não nos interessa a “democracia de papel”. Precisamos da efetividade democrática que somente se (re)instalará, com respeito a princípios constitucionais inegociáveis e que não estão presente somente em uma ou duas pautas.
As pautas de retrocessos estão intercaladas, e para que possamos permear essa teia corrosiva da antidemocracia são necessárias alianças, para que a igualdade não seja o alcance somente no momento da morte (onde todos são iguais), mas que a igualdade seja o mote da vida, vida que neste contexto social somente poderá acontecer com a luta conjunta, genérica.
Uma luta interseccional que abranja imigrantes, transgêneros; gêneros; minorias sexuais, lésbicas, gays, utilização de agrotóxicos; sistema penal que desumaniza; terceirização; infoproletários e tudo que signifique a não observância do que é plural democrático e humano.
O que está em jogo é a democracia. É a sociedade. É o ser humano. A pauta é única e a saída também é única: a unicidade!
[1] https://www.ilo.org/brasilia/conheca-a-oit/hist%C3%B3ria/lang–pt/index.htm
[2] Las reglas del juego – Una breve introducción a las normas internacionales del trabajo – Edicion revisada 2014, pág 9.
[3] https://www.oeco.org.br/dicionario-ambiental/28588-o-que-e-desenvolvimento-sustentavel
[4] “Corpos em Aliança e a Política das Ruas – Notas para uma teoria performativa de assembleia – Judith Butler – Editora Civilização Brasileira – Rio de Janeiro 2018, pag. 75-76)
[5] Plan de Acción de la OIT sobre Igualdad de Género 2018-2021 OFICINA INTERNACIONAL DEL TRABAJO GINEBRA
[6] Feminismo, Pluralismo e Democracia – Edita LTR – Coordenadores: Roberto Parahyba de Arruda Pinto, Alessandra Camarano e Helen Mara Ferraz Hazan, pag. 75
Alessandra Camarano Martins é presidente da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (Abrat).