Reduzir alguém à condição análoga à de escravo, crime tipificado no artigo 149 do Código Penal, não exige demonstração de jornada de trabalho excessiva nem cerceamento da liberdade, pela apreensão de documentos ou convívio diário com vigilância armada. Basta que as condições de trabalho sejam consideradas degradantes, que atentem contra a saúde, a segurança e a dignidades dos trabalhadores.
O fundamento levou a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região a rejeitar apelações criminais interpostas por um empresário rural e um recrutador de mão de obra, ambos condenados por trabalho escravo na região de Ibiraiaras (RS). Tal como o juízo de primeiro grau, os desembargadores entenderam que o tipo penal ficou configurado, diante da falta de higiene e limpeza nos locais onde dormiam os trabalhadores, da superlotação dos alojamentos e da precariedade das instalações sanitárias.
O relator dos recursos, desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, disse que o empresário incorreu em dolo eventual, pois evitou aprofundar-se nas condições dos trabalhadores. E ele tinha como prestar estas informações em juízo, pois, na condição de gerente do consórcio rural, era o responsável pela contratação da mão de obra.
“Consoante a teoria da ‘cegueira deliberada’, atua dolosamente o agente, por ter se colocado em posição de alienação de situações suspeitas, buscando não aprofundar as circunstâncias objetivas. É a intencional e inescusável autocolocação em estado de desconhecimento, para fins de auferir alguma vantagem da situação objetivamente suspeita”, registrou o acórdão.
Com a confirmação dos termos da sentença, o empresário acabou condenado a três anos de reclusão e ao pagamento de multa, mas teve a pena corporal substituída por prestação de serviços comunitários. O empreiteiro de mão de obra, por sua vez, foi condenado a três anos e nove meses de reclusão mais multa. Ele terá de cumprir a pena, em regime inicial aberto, pois não obteve o direito à substituição por sanções alternativas.
Denúncia do MPF
O gaúcho Marconi Christianetti, presidente de um consórcio de produtores rurais estabelecido em Ibiraiaras (RS), e o empreiteiro paulista Antônio Carlos Martins, conhecido como “Toni”, foram denunciados por submeter 35 trabalhadores rurais à condição análoga à de escravos. Segundo o Ministério Público Federal, eles sujeitaram o grupo a condições degradantes de trabalho. Além disso, em razão de dívida contraída, restringiram liberdade de locomoção deles, se apossando de documentos pessoais, a fim de retê-los no local de trabalho. Por incorrer nestas condutas, segundo a denúncia, foram incursos nas sanções do artigo 149 do Código Penal.
Toni foi o responsável por trazer a maioria dos trabalhadores da cidade de Pedreiras (MA) para trabalhar na colheita da batata na cidade de Ibiraiaras, no nordeste do Rio Grande do Sul, no período compreendido entre o final de maio e meados de julho de 2011. Para cada saco de batatas colhido, eles receberiam R$ 20,00. Como empreiteiro contratado por Marconi, Toni era o responsável pela captação, transporte e alojamento da mão de obra em solo gaúcho.
Segundo o relato da denúncia, assim que chegaram, os trabalhadores foram alojados em uma residência localizada em frente de uma capela, na zona rural do município. O local, além de não fornecer espaço suficiente para todos, não contava com as mínimas condições de higiene, já que os dejetos oriundos do banheiro e cozinha eram lançados ao lado do imóvel.
A fiscalização apurou que não havia roupas de cama e colchões para todos. Aliás, os poucos colchões existentes haviam sido vendidos aos trabalhadores pelo próprio Toni, ao preço de R$ 80,00 cada. Os trabalhadores também não possuíam roupas apropriadas para o inverno, já que muitos deles contavam somente como a “roupa do corpo”, totalmente inadequada para o frio do Rio Grande Sul.
Ouvidos perante a Polícia Federal, os trabalhadores esclareceram que, quando havia condições climáticas para a realização da colheita, recebiam pelo que colhiam. Caso não pudessem trabalhar, não recebiam nada, mas as suas despesas de manutenção continuavam fluindo. E mais: tinham de pagar uma cozinheira para o preparo de suas refeições, cujos ingredientes também tinham de ser bancados pelos próprios trabalhadores.
O relatório de diligências do MPF registrou os trabalhadores não retornavam a seus locais de origem porque não tinham dinheiro para as passagens. É que, em decorrência do tempo chuvoso, no RS, eles não conseguiram realizar a colheita, ficando sem remuneração. Por isso, estavam em “situação de prejuízo”, devendo estadia e alimentação ao contratante.
Sentença procedente
A 3ª Vara Federal de Passo Fundo (RS) julgou procedente a denúncia apresentada pelo MPF, por comprovar a materialidade e a autoria dolosa da maior parte das condutas descritas na inicial, já que nem todas as irregularidades apontadas tinham relevância penal, mas apenas trabalhista.
O juiz federal Rodrigo Becker Pinto observou, no entanto, que não é qualquer descumprimento de norma trabalhista que dá ensejo à incidência do artigo 149 do Código Penal. “Todavia, quando essa violação for tamanha a ponto de ferir a dignidade da pessoa humana na relação do trabalho, estarão os trabalhadores, sem dúvidas, recebendo tratamento análogo à de escravo, justamente como restou comprovado no caso concreto”, complementou.
O julgador constatou que o corréu Marconi, condição de presidente do consórcio de agricultores, foi o responsável pela contratação de Toni. É que este último, na qualidade de empreiteiro — conhecido por “gato”’ no mercado — aliciou trabalhadores para o tomador final da mão de obra. Ou seja, o beneficiado pelas contratações irregulares foi o consórcio, grupo formado por aproximadamente 17 agricultores presididos por Marconi.
Para o julgador, as condições degradantes a que os trabalhadores foram submetidos se mostram “gritantes” no processo. “A situação subumana verificada em um dos alojamentos, retratadas pelos servidores do MPF e do MTE nos relatórios de fiscalização encontram-se comprovadas tanto pelas fotografias insertas nos próprios relatórios quanto naquelas que acompanharam a denúncia, bem como pela prova testemunhal colhida judicialmente”, destacou.
Ao fim e ao cabo, Becker Pinto concluiu que a responsabilidade pelos fatos denunciados era de ambos, pois agiram para satisfazer mútuo interesse econômico. “Não cabe a Marconi alegar que nada sabia, porque, fundamentalmente, deveria e tinha todas as condições para saber. Se não tomou conhecimento, agiu com a chamada ‘cegueira deliberada’, o que não lhe exime da configuração do dolo; ao revés, confirma-se o agir doloso que, se não direto, foi, no mínimo, eventual”, encerrou.
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Ação Penal 5008374-76.2012.4.04.7104/RS